OS CARRILHÕES DE MAFRA

BREVE HISTORIAL - Por: Maria João Vieira, Semanário Euronotícias
Carrilhões de Mafra ou as vantagens de uma rainha ser estéril

Francisco Gato, um dos actuais carrilhonistas de Mafra, leva-nos ao interior de uma máquina que faz os sinos tocarem música. Uma história com 300 anos, que começa com a falta de herdeiro em Portugal porque D. Maria Ana de Áustria não conseguia engravidar. Em desespero de causa, D. João V promete construir em Mafra um convento. E já com o filho nascido e o edifício em construção, ouve música de sinos numa viagem à Flandres.

Uma história cheia de histórias e um romance à mistura.

D. João, rei de Portugal, o quinto desse mesmo nome, tinha tudo para ser um monarca feliz. Se, se pudesse dar um salto de quase 300 anos para atrás e ir espreitar a Corte do princípio do século XVIII, haveríamos de parecer uns basbaques à vista de tanto ouro, tanta pedra preciosa, tanta pérola, tanto brocado, tanto bicho feroz e outras excentricidades que o ouro do Brasil podia comprar e os territórios de África e da Índia faziam desembarcar no Cais das Colunas ou em Belém.

A tudo isto ainda há que acrescentar que D. João V estava casado com D. Maria Ana de Áustria, uma princesa de sangue real – que nisto de casamentos, a Corte portuguesa foi sempre intransigente e sempre se casou com pessoa de igual qualidade! – e que, diz quem viveu nesses tempos e a pôde ver de perto, até nem era nada feia!
Mas então não é que o rei tinha um problema?!
Ah pois tinha! E nem era nada pequeno... Casado há três anos e... nada! Quer dizer: de herdeiro nem sombra. O que, convenhamos, para um rei não é problema pequeno. De que lhe servia ter um Reino que ia deste ao outro lado do mundo? E súbditos com todas as cores de pele? E ouro que chegava para comprar tudo quanto lhe apetecesse? Sim! De que lhe servia isto tudo se não tinha ainda filho a quem deixar este Império?
E três anos de casamento... Já era tempo de sobra para que D. Maria Ana tivesse dado ao mundo, pelo menos,
um filho...

Num dia do ano de 1711, tal foi a aflição do rei de Portugal que resolveu comerciar com Deus o que não podia mercadejar com os homens. Ou seja, desceu da sua qualidade de soberano e tornando-se simples mortal teve com o Criador um daqueles desabafos que muita gente tem quando já esgotou todos os outros meios: fez uma promessa! “Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos.”
E Deus Nosso Senhor deve ter tido muita pena deste rei que podia tudo, só não podia ter um filho. E fez-lhe a vontade! Ainda não tinha passado um ano sobre o dia da promessa e já a rainha estava grávida e nascia
D. José... E como promessa de rei é para cumprir, em 1717 começam as obras do Convento de Mafra.
O arquitecto encarregue do projecto é João Frederico Ludovici, italiano, que morava em Lisboa num palácio ali a São Pedro de Alcântara, no mesmo sítio onde hoje está o Solar do Vinho do Porto – mas isso é outra história, que de outra vez se contará.
O que interessa é que já andava toda a gente muito contente. O rei tinha herdeiro. Os franciscanos iam ter um convento. E D. João V até se deu ao luxo de, em 1720, ir viajar pela Flandres – quem sabe se para ver de perto como iam os negócios da Feitoria Portuguesa! – levando no séquito o seu amigo marquês de Abrantes.
E é aí, no Norte da Europa, que o rei de Portugal ouve, pela primeira vez, música de sinos.

“Que é isto?”, quer saber o monarca. E explicam-lhe que é isso mesmo, música de sinos, que se toca com um carrilhão. É que um carrilhão é um conjunto de sinos afinados que tocam peças de música mediante o manuseamento de um mecanismo algo parecido, para a comparação ser mais fácil, com um piano. Mas em vez de teclas tem umas maçanetas de madeira e um só homem pode tocar todas aquelas músicas e muitas mais. Bom... isto já é a gente a inventar um bocado, porque não sabemos se foi exactamente assim que explicaram a D. João V o que era um carrilhão.

Mas lá que lhe explicaram, isso é certo. E o monarca gostou tanto que até quis logo saber o preço: 400 contos disseram-lhe! Uma verdadeira fortuna, para a época. Uma verdadeira pechincha para um rei tão rico e dono de metade do mundo. E mesmo sem ter de pedir opinião a terceiros e sem ter de perguntar a qualquer ministro das Finanças se haveria cabimento orçamental, o rei decidiu ali mesmo: “Pois nunca supus que fosse tão barato! Quero dois!” E faz a encomenda a Melchior de Haze, o melhor fabricante de carrilhões da Flandres.
No entanto, é Guilherme de Witlocx o flamengo que acaba por fazer o carrilhão e os 47 sinos que ainda hoje estão na Torre Sul do Convento de Mafra e os únicos que ainda tocam.
O carrilhão da Torre Norte é feito em Liége, na Bélgica, e parece (é o que se diz) que nunca saiu tão bom como o outro. O facto é que a chegada dos sinos a Lisboa foi um acontecimento, pelo tamanho de cada um deles (são todos diferentes) e pela quantidade. E depois de desembarcados, foram levados para Mafra em carros puxados por bois e sob forte escolta militar, por certo mais para sublinhar a importância da ocasião do que para evitar um roubo. Quem é que se ia lembrar de levar para casa um sino de 10 toneladas?!

Francisco Gato nasceu a ouvir a música do carrilhão. O pai, Francisco Alves Gato foi o carrilhonista de Mafra entre 1947 e 1957, “depois fizeram-lhe uma grande injustiça: demitiram-no para dar o lugar a outro e o meu pai nunca mais se recompôs do desgosto”, conta.

Ele próprio, Francisco, estudou piano no Conservatório de Mafra com José Henriques dos Santos e, sempre que podia, subia ao carrilhão e ia tocar. Mas tinha outras paixões na vida. Ser aviador! Ainda andou no Técnico a estudar Engenharia Mecânica. Aos 20 anos entrou para a Força Aérea e em 1971 tornou-se piloto da TAP. Nunca deixou de tocar o carrilhão de Mafra. Mas a sua profissão era ser comandante de avião.
Só quando se reformou passou a dedicar todo o seu tempo aos sinos da Torre Sul e àquela máquina de madeira que parece um piano.
“Tocar carrilhão cria calos nas mãos”, diz. O carrilhão é um mecanismo complicado. Tão complicado como o caminho que é preciso fazer para chegar lá acima. São lances e lances de escada de pedra, degraus baixos e largos, mas intermináveis. Depois, salas que encadeiam umas nas outras, de tecto em abóbada e pouco mais alto que um homem.

Aí estão hoje guardadas peças antigas. E depois, uma porta que se abre e um quadrado de pedra, quase todo ele ocupado por um mecanismo complexo. Tão complexo como incompreensível. Mas é aí que está a máquina que faz andar o relógio da torre, mais os fios que fazem tocar os 47 sinos e os famosos “papagaios de Mafra”, umas peças de metal que fazem lembrar papagaios. Mas isto é só o começo do carrilhão... porque depois há outra porta. Minúscula. E por ela se entra numa escada de pedra, estreita, em caracol. Interminável. Igual a todas aquelas escadas dos castelos dos contos de fadas, escadas que não têm fim e que quem consegue chegar lá a cima, encontra uma princesa, ou um tesouro, ou uma coisa assim. Mas no fim destas escadas que parecem não ter fim, está só a sala mínima onde Francisco Gato se senta para tocar o carrilhão...

Todos os domingos, às 4 da tarde, há concerto. Francisco Gato e Abel Chaves dividem entre si os domingos de concerto. “O Abel é muito novo mas é muito bom. Às vezes não pode vir um domingo ou outro, porque ele é profissional e tem compromissos... nessa altura venho eu, que já estou reformado. Damo-nos muito bem e eu gosto de saber que há alguém mais novo interessado na música de carrilhão”, conta Francisco Gato.

O destino tem desígnios tão estranhos... Se D. Maria Ana de Áustria tivesse dado logo um herdeiro à Coroa Portuguesa, D. João V não tinha precisado de fazer uma promessa. Mafra nunca teria tido um convento. O rei talvez nunca tivesse comprado dois carrilhões na Flandres por muito que tivesse gostado da música dos sinos. Francisco Gato não teria nascido filho de um carrilhonista a ouvir o som do carrilhão. José Saramago nunca teria escrito um livro chamado “Memorial do Convento”, onde Baltazar e Belimunda se encontram... Se D. Maria Ana de Áustria não tivesse tido tanta dificuldade em engravidar, imagine-se a quantidade de coisas que ficariam por acontecer!

Maria João Vieira
Euronotícias


Dicografia:
Editora: EMI Records CD 7243 5 55313 2 2

Executantes:
A. Abbenes
T. Fair
A. Chaves
F.J. Gato

Nome do CD: Lusitana Musica Vol. II

Não disponível em Portugal

Disponível nos U.S.A. em:
Tower Records
Massachusetts Ave
Boston MA USA
(or New York store)



Os três mais importantes
carrilhões nacionais
 
 
 
ALGUNS CARRILHÕES
EM FRANÇA
 
 
CARRILÃO VIRTUAL